Nem toda lager é leve. E esse post irá te mostrar isso.
Um tempo atrás tinha uma propaganda que associava o estilo Bock ao inverno. Por que essa associação? E qual é a desse bode no título????
Revolta contra uma propaganda
Em julho de 2014 eu fiz um tour cervejeiro pelos estados do sul. Em Eldorado do Sul, ao lado de Porto Alegre, eu visitei uma cervejaria e o próprio dono me levou pra conhecer as instalações. Em um determinado ponto ele me apresentou algumas cervejas e, entre elas, havia uma no estilo Bock.
Em tom meio revoltado ele me disse: “Não sei por que foram inventar que Bock só se bebe no inverno. Pra mim, esse estilo é tão bom que devia ser aproveitado o ano todo. Maldita propaganda!”
Agora, vamos aos porquês...
Uma rápida história do estilo
Tudo começou na cidade alemã de Einbeck, no séc XIII. Por lá se fabricava uma cerveja encorpada, mais alcoólica, levemente adocicada e que atraía muito os mercadores da região.
Com inveja... ops ... pensando em seus consumidores e a fim de reduzir custos de importação, os duques da região da Baviera tentaram imitar o estilo, mas sem muito sucesso.
Isso perdurou até o começo do séc. XVII, mais precisamente 1617, quando um mestre cervejeiro de Einbeck, Elias Pichler, foi contratado pela Hofbräuhaus (Munique) para reproduzir aquela cerveja.
Enfim nasceu a versão de Munique, que não era igual à de Einbeck. Era mais escura e usava 100% cevada, diferente da original, que usava 1/3 trigo + 2/3 cevada.
Além disso, devido ao lúpulo ser mais caro em Munique e a água usada (do rio Isar) mais alcalina, o que aumentaria o amargor áspero e ruim, a nova versão teve seu teor de lupulagem reduzido na receita.
Essa adaptação caiu no gosto popular e, finalmente, ganhou o público.
E quanto a Eisbeck?
Enquanto isso, Eisbeck parou de produzir o estilo pois a cidade sofreu duas calamidades que arruinaram sua economia:
Dois grandes incêndios e, logo depois,
A Guerra dos 30 anos (1618-1648), guerra tal que prejudicou não só a cidade, mas boa parte da Alemanha
Doppelbock e os monges
Existe uma variante da Bock que é, literalmente, duas vezes mais forte que ela, é a Doppelbock ou Double Bock, mas, ao contrário do que ocorreu com muitos estilos, por exemplo a Stout, que evoluiu da Porter (mais detalhes nesse post), a Doppelbock NÃO É uma evolução natural da Bock.
Sua criação surgiu de forma paralela e independente pelas mãos dos monges Paulaner (ordem de São Francisco de Paula), no Monastério de Andechs em Munique, com o intuito de servir como pão líquido durante o período de jejum da quaresma.
Esses monges a batizaram de Salvator, por isso, hoje muitas cervejarias colocam o sufixo ‘ator’ nas suas cervejas de estilo Doppelbock. Por exemplo: Paulaner Salvator, Primator Exkluziv, Ayinger Celebrator, Tucher Bajuvator, Comemorator Bierbaum, Abadessa Emigrator, Kronen Coronator e por aí vai.
(de tanto eu ler isso, pronunciando ‘êitor’ no final de cada nome, eu não pude evitar de me lembrar do Casseta & Planeta com seus produtos Tabajara)...
Ok, mas então, quem deu o nome de Doppelbock a esse estilo?
Foram os consumidores. Eles que perceberam a semelhança entre a cerveja dos monges e a Bock, mas com muito mais corpo e álcool, por isso, a chamaram de Doppelbock.
Curiosidade 1: algumas Bock são rotuladas como “weihnachtsbock” ou “osterbock” se elas são usadas nas semanas que precedem o Natal ou a Páscoa.
Curiosidade 2: Em 1894 a Paulaner patenteou o nome 'Salvator', que passou a ser marca registrada. Por isso, muitos concorrentes, que também chamavam suas Doppelbock de Salvator, tiveram que mudar os nomes de suas cervejas.
Outras variantes
Maibock => são envasadas em março, ficam em maturação e estão prontas para beber em maio (daí seu nome).
Sua grande diferença em relação à Bock tradicional é que ela é clara, no máximo âmbar, além de não ter o sabor de chocolate ou caramelo.
O maltado ainda domina, só que o amargor passa a ser mais presente.
O uso de maltes claros a leva a receber o nome de Helles (claro, pálido em alemão)
Eisbock => avô das Bock, com gravidade em torno de 1.093 ou mais, atingindo teor alcoólico que pode passar dos 20%.
O 'eis' refere-se ao seu processo de fortificação, em que a cerveja já fermentada é congelada, derretida gradualmente, o gelo é descartado e extrai-se somente com a parte da cerveja intensamente maltada e alcoólica.
Fora a intensidade alcoólica (e alta gravidade), elas são, essencialmente, uma bock tradicional.
Curiosidade 3: Esse método de fortificação é chamado de destilação a frio e é ilegal em alguns países, como por exemplo, nos Estados Unidos. Por lá eles têm a Eisbock, mas o fazem simplesmente fermentando uma Bock a partir de um mosto com uma OG bem mais alta.
Resumo das Características
A Bock é uma cerveja de coloração dourada, âmbar ou avermelhada. Costuma ser encorpada, varia de levemente adocicada, por vezes tostada, a muito maltada. Possui também notas florais ou frutadas provenientes dos lúpulos alemães e com pouco amargor.
E, justamente por ser potente, mais maltada, mais alcoólica, esse estilo virou sinônimo de consumo de inverno. Ahá, tá aí a explicação da propaganda!!!
Importante notar que o caráter adocicado vem mais devido à baixa lupulagem do que de uma fermentação incompleta. Erro que muita gente comete, achando que a fermentação deve ser interrompida no meio, muito pelo contrário, ela é longa e paciente.
Seu colarinho é cremoso e costuma ter uma boa retenção apesar do alto teor alcoólico.
A Doppelbock é ainda mais forte, mais maltada e com álcool variando de 7% a 12%. Sua cor também varia de ouro escuro ao marrom escuro. As versões mais escuras podem remeter a chocolate e ter aromas tostados.
O Bode
Quando a Bock de Munique ficou pronta, ela levou o nome de Ainpöeckish Pier em homenagem a Einbeck. Não demorou muito para que os consumidores passassem a chama-la simplesmente de Ainpöeckish, depois Poeck e, finalmente, Bock.
Porém, bock significa bode em alemão, daí todo o simbolismo em torno do animal.
Dicas de ouro
Malte Munich: os maltes munich de hoje, na sua maioria, parecem ser descendentes direto do malte usado em Munique no surgimento da Bock. Por isso, esse deve ser o principal malte da receita.
Além disso, o que ele fornece de cor e sabor são únicos para esse estilo e vêm das melanoidinas formadas na malteação.
Malte Crystal: use crystal de 90L a 120L (10% a 20%), isso ajudará a fornecer uma riqueza de cor e sabor desejados ao estilo.
Outros maltes: Há variantes de receitas que adicionam malte chocolate (1% a 4%) para a cor e trigo (5% a 6%) para a retenção de espuma.
Mostura: originalmente era feita a decocção. Aqui, seguindo a ideia de simplificação, vamos aplicar uma mostura mais densa e fervura mais longa, isso tudo par fornecer a formação de melanoidinas e reação de Maillard. Mas sem exagero, pra não criar uma cerveja tão encorpada que fique enjoativa.
A temperatura será um pouco mais alta para termos mais corpo, algo em torno de 68°C.
Lupulagem: na Bock isso dever ser discreto. A ideia é ter uma relação BU:GU em torno de 0,33.
Os lúpulos serão os alemães Hersbruck, Hallertau, Tettnanger e Saaz.
60% dos lúpulos serão para gerar amargor, 24% para sabor e 16% para aroma.
Água: se formos seguir o perfil da água de Munique, deve ter alto teor de carbonatos. Esse carbonato se equilibra com a acidez dos maltes escuros, por isso, a tradição das cervejas mais escuras de Munique.
Por outro lado, essa alcalinidade gera um amargor áspero, obrigando o cervejeiro a limitar o teor de lupulagem.
Fermentação: o ingrediente mais importante é a paciência. A fermentação primária leva cerca de 3 semanas, a secundária junto com a fase de lagering dura, usualmente, 2 meses (Bock, Doppelbock) ou até 6 meses (!!!) no caso de uma Eisbock.
Isso tudo devido à combinação temperatura baixa + alta densidade do mosto.
É muito importante que o mosto seja bem aerado a fim de garantir teor suficiente de oxigênio, se possível, fazer isso duas vezes: na inoculação da levedura e 24h depois.
Importante preparar um starter e inocular somente quando o mosto estiver na temperatura de fermentação.
Receita de um DOPPELBOCK
Visto que a intenção de meus posts é servir à maioria dos cervejeiros eu vou passar uma receita que não usa decocção, mas que faz uso de duas coisas a fim de contornar isso ou, pelo menos, chegar próximo ao resultado de uma decocção (*).
Duas rampas de mostura. Uma a 62°C e outra a 68°C para simular as rampas de temperatura do processo de decocção.
Fervura prolongada a fim de favorecer a reação de Maillard. Se não sabe o que é isso, veja meu post sobre maltes e também esse post do Herik Boden.
(*) Vale ressaltar que, apesar de trabalhosa (sua maior desvantagem), a decocção traz algumas vantagens, como aumento da eficiência, maior extração do caráter maltado, maior taxa de caramelização e aumento da coagulação de proteínas (a cerveja fica mais cristalina).
Vamos à receita (ingredientes para 20l em um sistema com 75% de eficiência):
OG = 1.086
FG = 1.031
ABV = 8.0%
IBU = 21
Cor = 35 EBC
42l de água
Malte Munich 2,1 kg
Malte Munich Dark 2,1 kg
Malte Pilsen 2-row 2,1 kg
Malte Caramunich 380 g
Malte Carapils 380 g
Malte Caravienne 380 g
Malte Crystal 80L 200 g
Lúpulo Hallertauer Hersbrucker 4.0% 42g 60min
Lúpulo Hallertauer Hersbrucker 4.0% 42g 15min
Leveduras (escolha uma dessas): Wyeast Labs 2206, Wyeast Labs 2124, Wyeast Labs 2308, White Labs WLP833, White Labs WLP820, Fermentis SafLager S-23, Mangrove Jack's M76 ou TeckBrew 84. Para as leveduras líquidas, faça 2 litros de starter. Para as secas, use 2 pacotes e não se esqueça da hidratação.
Mostura
20min @ 62°C
45min @ 68°C
10min @ 76°C
Fervura
90min
Fermentação/Maturação
11 dias @ 9°C (ou conforme indicação do fabricante)
3 dias @ 13°C (descanso diacetílico)
42 dias de lagering: iniciando nos 13°C da etapa anterior e reduzindo até chegar a 3°C (ou o mais próximo que conseguir disso) no 7º dia, a partir daí, manter a 3°C até o 42º dia.
Envase
Carbonatar a 2.5 volumes de CO2
Isso dá cerca 6.5g/l se for fazer priming com açúcar
Ou, cerca 0.75 bar (10.9psi) de CO2 no caso de carbonatação forçada com a cerveja a 3°C
Serviço
A cerveja estará pronta para beber assim que carbonatada, mas atingirá seu auge após uns 3 meses
Se mantida em temperatura de adega (20°C) durará um ano
Servir a 7ºC
Harmonização
Carne Suína Assada
Batatas gratinadas
Feijoada
Chucrute
Goulash
Salsicha
Codorna
Peru
Chester
Linguiça de frango
Lombo de porco e defumado
Bife de carne bovina
Cheesecake
Petit gateau e torta de chocolate
Torta de maçã
Bife de Carne Bovina
Batatas Gratinadas
Javali
Creme Brûlée
Conclusão
Você viu que a Bock, ao contrário do senso comum, é uma cerveja do tipo lager mas é potente, encorpada e alcoólica.
Por isso tudo, acabou virando cerveja pra se tomar no inverno. Esqueça isso!! Faça e tome sempre que quiser, pra variar, pra apreciar, pra aprender.
Além disso, você aprendeu que a Doppelbock não surgiu a partir da Bock, foi apenas uma associação por semelhança feita pelos próprios consumidores. Isso é um bom exemplo de como, às vezes, os nomes podem levar a conclusões erradas se você não souber o que está por trás.
Referências
Livros
ZAINASHEF, Zamil; PALMER, John J. Brewing Classic Styles. Brewers Publications, 2007
DANIELS, Ray. Designing Great Beers. Brewers Publications, 2000
PALMER, John J. How to Brew: Everything You Need to Know to Brew Beer Right the First Time. Brewers Publications, 2006
SZAMATULSKI, Mark. Clone Brews: Recipes for 200 Commercial Beers. Storey Publishing, 2010
FERGUSON, Euan. Cerveja Artesanal. Quarto Editora, 2018
LAW, Dave; Grimes, Beshlie. Cerveja Artesanal. Publifolha, 2015
OLIVER, Garrett; MENDES, Iron. O Guia Oxford da Cerveja. Blucher, 2020
Sites e créditos das imagens
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