Cervejeiro faz mosto. Quem faz cerveja é a levedura!
É na fermentação que ocorre o momento mágico em que o mosto é transformado em cerveja.
Vamos ver como isso ocorre e por que uma simples mudança de temperatura de fermentação pode gerar cervejas bem distintas.
Uma vez eu assisti a um painel de discussão na Degusta Beer & Food 2014 e um dos painelistas era o mestre cervejeiro proprietário da Bodebrown, o Samuel Cavalcanti. Ele disse uma coisa que eu concordo: "Quando eu penso em uma receita, eu começo de trás pra frente. Que levedura e condições de fermentação eu devo usar pra atingir meu objetivo? Só depois eu vejo a questão do malte, lúpulo etc".
As leveduras são organismos pertencentes ao reino Fungi (assim como o bolor que cresceu naquele pão que você esqueceu no armário), eucarióticos, predominantemente unicelulares, invisíveis a olho nu e podem ser encontradas em vários lugares.
Elas se reproduzem por brotamento, como pode ser visto nessa representação gráfica.
A reação bioquímica ocorre principalmente dentro das células e, em resumo, é a transformação de moléculas de glicose em álcool e gás carbônico:
C6H12O6 (glicose) -> 2C2H5OH (álcool) + 2CO2 (gás carbônico)
Interessante notar que a fermentação ocorre em duas fases:
Quando há oxigênio no mosto: na fase inicial, quando ainda há bastante O2 no mosto, a levedura usa uma porção do açúcar para se multiplicar e produzir gás carbônico e água. Ou seja, não produz álcool, ela toma fôlego e se reproduz.
Por isso, é necessário aerar adequadamente o mosto antes de iniciar a fermentação. Não pode ser de menos e nem demais. Baixa aeração acarreta em demora no início da fermentação, maior tempo de fermentação, baixo grau de conversão do açúcar em álcool e problemas de off-flavor (aromas indesejados).
Aeração excessiva acarreta em fermentação muito rápida, excesso de multiplicação de células, poucos ésteres (aromas frutados), perda de extrato e aminoácidos, espumamento, mais acetaldeído e mail álcoois superiores (esse é o álcool que dá dor de cabeça!).
A segunda fase da fermentação ocorre quando o O2 foi consumido na primeira fase e a levedura inicia a fermentação alcoólica. Aí sim, ocorre a conversão da maior parte do açúcar em CO2 e álcool. Mas se a primeira fase não for bem sucedida, a levedura estará fraca e em pouca quantidade, abrindo chance para contaminação, falha na fermentação ou geração de aromas indesejados.
Mas nem só de álcool vive a cerveja. Além do álcool, outros componentes muito importantes são produzidos pela levedura, como ésteres (que dão o caráter frutado), diacetil (aroma amanteigado), fenóis, aldeídos, produtos sulfurados e álcoois superiores.
TAXA DE INOCULAÇÃO
Um ponto a ser bem estudado se refere à dosagem de levedura, também chamado de taxa de inoculação.
Baixa dosagem de leveduras causa maior tempo de fermentação, maior risco de contaminação, aumenta a chance de diacetil, perda de extrato e precisa de mais O2.
Alta dosagem aumenta a velocidade da fermentação, libera muito CO2, aumenta espumamento, envelhecimento da cultura e maior risco de autólise (morte celular).
Usualmente as quantidades necessárias são:
Para cervejas Ale: 0.75 milhões de células/ml/°P (*)
Para cervejas Lager: 1.50 milhões de células/ml/°P (*)
(*) °P = Grau Plato. É uma das medidas de densidade do mosto. Para calcular o grau plato tendo a densidade específica, pega-se a parte milesimal da densidade e divide-se por 4. Por exemplo, uma gravidade de 1,052 equivale a 52/4 = 13°P
Cada pacote de levedura seca (pacotes de 11g) traz aproximadamente 100 bilhões de células. Mas isso varia muito conforme o fabricante ou o tipo de fermento.
Por exemplo, para 10l de mosto de um estilo ALE a 1,052 necessita-se: 0.75x10000x13 = 97.5 bilhões de células. O que dá cerca de 1 pacote de levedura seca para os 10l.
Para facilitar seu cálculo, que envolve se vai ou não usar starter, viabilidade da levedura, tipo (seca ou líquida) etc, fica mais fácil acessar sites de cálculo de inóculo:
ALTA ou BAIXA Fermentação?
As leveduras podem ser separadas em dois grandes grupos:
Alta Fermentação ou ALE: são as leveduras usadas na família ALE de cervejas; por serem menos densas que o mosto (considerando densidade típica em torno de 1.050) elas flutuam e a atividade metabólica ocorre na superfície do líquido, na parte alta do tanque, daí vem a origem do nome (Top Fermentation).
Tal atividade ocorre tipicamente em temperaturas entre 16° e 26°C e a fermentação primária dura de 3 a 5 dias.
Repito, o nome Alta Fermentação é porque ocorre na parte alta do fermentador e não porque ocorre em temperaturas altas.
Baixa Fermentação ou LAGER: são as leveduras usadas na família LAGER de cervejas; por serem mais densas que o mosto (considerando densidade típica em torno de 1.050) elas afundam e a atividade metabólica ocorre no fundo do líquido, na parte baixa do tanque, daí vem a origem do nome (Bottom Fermentation).
Tal atividade ocorre tipicamente em temperaturas entre 7° e 14°C e a fermentação primária dura de 7 a 12 dias.
Repito, o nome Baixa Fermentação é porque ocorre na parte baixa do fermentador e não porque ocorre em temperaturas baixas.
Mas aí vem uma questão. Se você tiver um mosto bem denso (densidade em torno de 1.090, por exemplo) e usar levedura Lager, elas irão flutuar e trabalhar na superfície. E aí? Por isso deixaram de ser lager?
A biologia resolveu esse imbróglio analisando os genes das leveduras. Hoje a definição correta é: levedura do tipo LAGER produz melibiase, uma enzima que a torna capaz de digerir o dissacarídeo melibiose. Ou seja, se consegue comer melibiose, é Lager.
Nada impede que você fermente uma levedura ALE em baixa temperatura ou uma LAGER em alta temperatura. Isso gera características que mesclam os dois grandes grupos (ale e lager). É assim que são feitas as cervejas AltBier e California Common, respectivamente.
Quais variedades?
As leveduras mais utilizadas em cervejaria são:
- Saccharomyces cerevisiae: levedura ale (alta fermentação)
- Saccharomyces uvarum = Sccharomyces Carlbergensis : levedura lager (baixa fermentação)
- Brettanomyces Bruxellensis: levedura selvagem que, se usada corretamente, cria sabores ácidos, cítricos, acéticos.
Quais formas de uso?
Há 3 principais formas de comercialização e uso da levedura:
Liofilizada (ou Seca): as cepas são propagadas no laboratório e depois passam por um processo de extração da água. Elas ficam em forma de pó, idêntico ao fermento seco usado em pães e bolos.
Como nem toda cepa resiste a esse processo, há menos variedades de leveduras nessa forma.
Líquida: Nesse caso a levedura é mantida em meio líquido e passa por menos alteração.
Como as cepas sofrem menos no processo, elas resistem mais e há uma variedade maior no mercado, porém, são mais caras.
Reutilização: É o ato de reutilizar a lama de levedura que sobrou em um tanque após a fermentação. Antes ela deve passar por um processo de 'lavagem' para então ser guardada para uso.
Como você pega uma levedura que estava em plena atividade e depois hibernou, não só a quantidade por mililitro é bem grande como sua vitalidade também. É a forma mais adequada de uso.
Indica-se o máximo de 5 reutilizações seguidas, pois além disso a chance de mutação da cepa aumenta significativamente, podendo alterar as características finais da fermentação e o desempenho durante o processo.
Veja aqui como se faz isso.
Que características eu imprimo à cerveja?
De modo geral:
ALE: cervejas mais frutadas e maior complexidade em aroma e sabor
LAGER: cervejas mais frescas e límpidas, conferem aromas mais florais e do malte e menor complexidade em aroma e sabor.
Mas cada fabricante costuma indicar o que, especificamente, seus produtos adicionam.
Por exemplo, pegue aqui o portfólio da Mangrove e veja o que cada produto faz.
CURIOSIDADES
1- Leveduras selvagens.
É qualquer levedura diferente da escolhida para a elaboração de determinada cerveja.
Ou seja, se você inoculou uma determinada levedura e, no processo, acabou adicionando também uma outra espécie, houve contaminação por levedura selvagem. Não precisa necessariamente ser uma levedura vinda do ar.
Em outros casos é desejável a contaminação pelo ar. Na família das Lambics a fermentação é feita de forma espontânea, com a bebida sendo exposta ao ambiente e aos seus micro-organismos, entre eles bactérias. O resultado são cervejas complexas, com características ácidas, cítricas, acéticas.
2- Zinco, o Viagra da levedura!
O Zinco deve ser acrescentado ao mosto, pois ele estimula o crescimento da levedura e ativação da fermentação.
Por não ser um elemento típico do malte nem da água, o cervejeiro deve adicioná-lo como faz com os sais e, preferencialmente, na fase de resfriamento do mosto.
3- Quais os principais nutrientes para a levedura?
Magnésio (Mg) e Zinco (Zn): necessários para as reações de fosforilação oxidativa, síntese de ATP, síntese de DNA e regulação da informação genética, importantes no metabolismo fermentativo
Vitaminas: co-fator das reações enzimáticas
Biotina: reações de carboxilação (síntese de aminoácidos)
Ácido nicotínico: nicotinamida para síntese de ATP
Tiamina (vitamina B): reações de carboxilação
Aminoácidos: a falta de nitrogênio gera mais alcoóis superiores
4- Reuso do CO2.
Em grandes cervejarias, o gás carbônico gerado na fermentação é recuperado, purificado em instalações especiais e reutilizado em diversas fases do processo, como, por exemplo, na correção de carbonatação da cerveja, ou no enchimento de barris e garrafas.
O excedente costuma ser vendido para microcervejarias que não possuem plantas de recuperações de CO2, ou utilizado na produção de refrigerantes.
5- Cravo ou Banana?
As cervejas de trigo, na maioria das vezes, podem ter dois aromas característicos: cravo ou banana.
Quem faz isso é a levedura (específica para cerveja de trigo) através da geração de ésteres e fenóis; e o mais interessante é que o fator que a faz gerar um outro aroma é a temperatura de fermentação.
Supondo que você pegue uma levedura que fermente entre 17°C e 24°C, se você fermenta o mosto na parte baixa da faixa, algo em torno de 18°C, a levedura gerará aromas de cravo (na verdade o elemento químico que faz isso é o 4-vinil-guaiacol, um tipo de fenol). Porém, para conseguir isso, você deve obrigatoriamente, fazer uma rampa de mostura em torno de 10-15min a 43°C, isso gerará ácido ferúlico, que é um precursor do 4-vinil-guaiacol.
Por outro lado, se você fermentar esse mesmo mosto, com essa mesma levedura, na faixa de 23°C, você terá aromas de banana (o éster acetato de isoamila é que gera esse aroma). Para essa geração, não há necessidade de uma rampa específica na mostura.
Outras Fontes:
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